quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Lei deveria autorizar obra sob o viaduto

A polêmica construção sob o viaduto da Av. Helion Póvoa não se resume à opção administrativa de ali construir boxes de alimentação, agita também questão referente à desafetação (mudança de destinação) do bem público. Os bens públicos podem ser: a) de uso comum, assim considerados os bens destinados ao uso de todos indistintamente, como os mares, ruas, praças etc; b) de uso especial, entendidos como aqueles destinados a um serviço ou estabelecimento público, como as repartições públicas, teatros, museus, universidades e outros abertos à visitação pública; e c) dominicais, que são os bens desprovidos de finalidade específica, não aplicados nem ao uso comum, nem ao uso especial, como, por exemplo, um prédio público desativado. Dentro dessa classificação, o espaço sob o viaduto é considerado bem de uso comum do povo, justamente por admitir a utilização por qualquer pessoa. A modificação desta destinação, de uso comum do povo para uso especial (instalação dos boxes), demandaria, segundo pensamos, LEI aprovada pela Câmara Municipal, não sendo suficiente decisão do Executivo. O extrato do contrato pode ser visualizado abaixo e conferido aqui, valendo destacar que serão gastos mais de R$ 477 mil na referida obra.

4 comentários:

Marcus Filgueiras disse...

Caríssimo amigo Cleber,

1.A questão de fato merece reflexão. Inicialmente, registro que acredito ser possível a desafetação de bem público por meio de ato administrativo. A doutrina apoia esse entendimento. A questão é admitir se, uma vez afetado por lei, possa ser desafetado por ato administrativo.

2. Se um bem foi afetado por lei, a razoabilidade indica que deverá ser desafetado também por lei de modo a não desautorizar ou trair a opção legislativa.

3. Entretanto, não se pode deixar de trazer à reflexão o princípio da separação dos poderes. E, como se sabe, a função administrativa incumbe ao administrador público a tarefa de curar pelo interesse público no caso concreto e não a função legislativa.

4. Tendo em conta essa brevíssima ordem de considerações (que não esgota o tema, registre-se), a questão deve envolver ainda uma outra pergunta: decretando outro uso da parte inferior da ponte, haverá a traição da vontade legislativa? Cleber, no caso, creio que não, e isso a partir de uma interpretação telelógica da própria lei que autorizou a construção da ponte. A finalidade de uma ponte não é gerar uma área de uso comum do povo na sua parte inferior. Salvo melhor juízo, creio que disposição dessa natureza não constou da citada lei. A finalidade principal da ponte é servir de via para tráfego de veículos. E o decreto que altera a destinação da sua parte de baixo sequer tange essa função, de modo que creio não ter havido violação ao princípio da legalidade.

É o que penso no momento. Mas o debate está aberto. Grande abraço.

Cleber Tinoco disse...

Mano Marcus,


Acredito que o princípio da legalidade, reitor da atividade administrativa, impõe a autorização legislativa para proceder-se à desafetação do bem, alterando a sua natureza de uso comum para uso especial.

O Professor Celso Antônio é enfático neste ponto:
"... a desafetação dos bens de uso comum, isto é, seu trespasse para uso especialou sua conversão em bens meramente dominicais, depende de lei ou de ato do Executivo praticado na conformidade dela. É que, possuindo originariamente destinação natural para uso comum ou tendo-o adquirido em consequência de ato administrativo que os tenha preposto neste destino, haverão, de toda sorte, neste caso, terminado por assumir uma destinação natural para tal fim. Só um ato de hierarquia jurídica superior, como o é a lei, poderia ulteriormente contrariar o destino natural que adquiriram ou habilitar o Executivo a fazê-lo". (Curso de Direito Administrativo, 22ª edição, pág. 878).

Por sua vez, o saudoso Hely Lopes Meirelles, considerado mais liberal entre os doutrinadores, deixou-nos perene lição, segundo a qual: "Em sentido estrito a administração dos bens municipais compreende unicamente sua utilização e conservação segundo a destinação natural ou legal de cada coisa, e em sentido amplo abrange também a alienação dos bens que se revelarem inúteis ou inconvenientes ao domínio público como, ainda, a aquisição de novos bens necessários ao serviço público local. O administrador do Município - o prefeito - tem, portanto, o poder de utilização e do dever de conservação dos bens municipais. Daí por que, para utilizá-los e conservá-los segundo sua normal destinação, não precisa de autorização especial da Câmara, mas para mudar a destinação, aliená-los ou destruí-los dependerá de lei autorizativa". (Direito Municipal Brasileiro, 16ª edição, pág. 312).

Importa notar que a área discutida incorporou-se ao patrimônio público municipal e se sua destinação para uso comum do povo não estava prevista na lei, certamente estava no contrato, já que ali foram criadas vagas para carros e, desse modo, foi transformada em bem de uso comum.

Não defendo que toda forma de desafetação se faça por lei, mas sim que a autorização legislativa é imprescindível para que o uso comum seja convertido em uso especial.


Grande abraço,

Marcus Filgueiras disse...

Prosseguindo no debate:

1. Se a destinação de uso comum do povo (vagas para estacionamento em baixo da ponte)se deu por contrato administrativo que tinha como objeto a construção da ponte e não por lei, creio, agora com mais convicção, desnecessária a autorização legislativa municipal.

2. Assim, a alteração do uso por meio de decreto municipal não compromete o princípio da legalidade e também não infirma as preciosas lições de nossos mestres que transcreveu.

3. Talvez há algo que ainda não me parece claro: a obra foi estadual e, portanto, o contrato foi estadual. O patrimônio estadual foi incorporado ao municipal? No caso, o acessório segue o principal ou de algum modo o Estado poderá reivindicar o direito de superfície e seus consectários? Como a Lei municipal tratou isso? Conforme se colocarem as respostas para essas indagações, talvez a solução jurídica inicial possa ser outra completamente diferente.

Abraços

Cleber Tinoco disse...

Mano Marcus,

Se por lei ou contrato, o que me parece relevante é que o bem estava há muito, antes até da construção da ponte, ao uso comum do povo. Aliás, parte do viaduto foi construída em área de praça pública.

A matéria de bens públicos suscita muitas controvérsias. Entretanto, as lições de Celso Antônio e de Hely Lopes apontam para a necessidade de lei para a mudança de destinação, não vejo como compatibilizar a sua conclusão com a oferecida por eles. O regime jurídico destes bens é de difícil compreensão, mas percebo uma tendência na doutrina dos mestres citados de tornar a mudança de destinação do bem público mais rigorosa do que a afetação.

A desapropriação atinge apenas algumas faculdades do direito de propriedade, embora reconheça que o assunto é motivo de bastante controvérsia.

Colho em Paulo Afonso Leme Machado o seguinte: "O bem público 'do povo' (art. 99, I, do CC/2002) merece receber tratamento diverso de outros bens públicos".

Interessante registrar também o voto do Min. Adhemar Maciel em julgamento no STJ: "Nesse sentido, a desafetação desse patrimônio prejudicaria toda uma comunidade de pessoas, indeterminadas e indefinidas, diminuindo a qualidade de vida do grupo. Não me parece razoável que a própria Administração diminua sensivelmente o patrimônio social da comunidade. Incorre em falácia pesnar que a Administração onipotentemente possa fazer, sob a capa da discricionariedade, atos vedados ao particular, se a própria lei - art. 17, Lei 6766/79) - impõe a tutela desses interesses".

É, de fato, um assunto tormentoso, mas perfilho a tese de que em casos como este a desafetação se faça por lei.

Abraço,