quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Solução jurídica para o impasse na votação do Projeto de Lei Orçamentária Anual 2024 de Campos-RJ.

 

 

1.   1. Impasse na votação.

 

Há algumas semanas estamos assistindo a um impasse entre Executivo e Legislativo na tramitação do projeto de lei orçamentária anual do nosso município para o exercício de 2024.

De um lado, o Prefeito alega que a LOA precisa ser aprovada para que possa executar as despesas públicas e, assim, evitar a paralisação dos serviços, ressaltando que sem a LOA não é possível firmar parcerias com as entidades do Terceiro Setor, que dependem da transferência de recursos financeiros pelo município para que possam realizar ações e serviços em prol de crianças e adolescentes.

Do outro lado, o Presidente da Câmara de Vereadores afirma que o projeto de LOA encaminhado pelo Executivo contém muitas falhas que precisam ser corrigidas antes da deliberação da Casa Legislativa.

O impasse, conforme vem noticiando a imprensa, levou o Ministério Público a instaurar inquérito civil e a buscar uma acordo entre os órgãos envolvidos para a solução do conflito. Além disso, vereadores da situação impetraram mandado de segurança para obrigar o Presidente da Câmara a colocar em votação o projeto da LOA, alegando o descumprimento de regras e prazos regimentais.

 

2.   2. Qual é a solução jurídica para o caso?

 

Nenhuma despesa pode ser realizada sem prévia autorização legislativa (princípio da legalidade orçamentária).

De acordo com JOSÉ AFONSO DA SILVA, “o princípio da legalidade em matéria orçamentária tem o mesmo fundamento do princípio da legalidade geral, segundo o qual a Administração se subordina aos ditames da lei”[i]

A Constituição estabelece que são de iniciativa do Presidente da República e, por simetria, do Governador e do Prefeito, a iniciativa das leis orçamentárias (lei do plano plurianual - PPA, lei de diretrizes orçamentárias - LDO e lei orçamentária anual - LOA).

O projeto da LOA deve ser encaminhado até 4 meses antes (31 de agosto) do encerramento do exercício financeiro. Os gastos autorizados na lei orçamentária anual devem estar de acordo com a LDO que, por sua vez, deve estar de acordo com o Plano Plurianual.

E o que acontece se, a despeito do envio da proposta orçamentária anual pelo Chefe do Executivo, o Legislativo permanecer inerte? Teríamos uma espécie de shutdown, isto é, a paralisação dos serviços públicos por falta de lei orçamentária anual? Há alguma particularidade em relação às entidades do terceiro setor que atendem grupos vulneráveis e dependem de transferências de recursos do orçamento municipal?

Desde logo, cabe ressaltar que o atraso na aprovação da LOA não é algo inédito no país, sendo muitas vezes um sinal de desarmonia entre os Poderes. A propósito, registra FERNANDO FACURY SCAFF que o atraso na aprovação dos projetos de lei orçamentária é rotina no Brasil. O que deveria ocorrer antes do encerramento do ano, para vigorar no ano seguinte, é usualmente aprovado já com o ano em curso. A lei orçamentária que deveria reger o ano de 1992 (Lei 8.409) foi aprovada em 28 de fevereiro de 1992; a de 1993 (Lei 8.652) também foi aprovada pelo meio do ano em curso (em 29 de abril de 1993); a de 1994 (Lei 8.933) foi um escândalo, pois foi aprovada em 9 de novembro de 1994. Mais recentemente a lei orçamentária de 2015 (Lei 13.115) foi aprovada em 20 de abril de 2015; a de 2016 (Lei 13.332) também teve um retardo escandaloso, tendo sido aprovada em 1º de setembro de 2016. Tais períodos coincidiram com enormes disputas entre os Poderes Executivo e Legislativo da União, que culminaram com o impeachment de dois presidentes e o rearranjo econômico do país[ii].

A despeito de se tratar de um fenômeno relativamente comum no país, especialmente no âmbito federal, não ocorreu a paralisação dos serviços em decorrência do atraso na aprovação da LOA. Nos EUA se fala em shutdown para se referir ao apagão financeiro pela não aprovação do orçamento no Congresso.

No Brasil, a doutrina rejeita a possibilidade de paralisação dos serviços públicos, apontando diversas saídas para contornar a inércia do legislativo.

Neste sentido, ensina JOSÉ MAURÍCIO CONTI que: "Várias são as possibilidades de resolver a questão da falta de orçamento, que, registre-se, pode ocorrer por diversas razões além da não aprovação tempestiva: não apresentação do projeto de lei, rejeição do projeto de lei, veto, etc. A doutrina já se debruçou sobre o tema, defendendo as mais diversas teses: prorrogação do orçamento vigente, aprovação do projeto por decurso de prazo, abertura de créditos orçamentários específicos ou a regulamentação prévia da situação pela Constituição ou pela lei. (...) Constituição de 1988 é omissa nesse aspecto e, atualmente, a situação vem sendo regulada, no âmbito federal, por dispositivos reiterados nas Leis de Diretrizes Orçamentárias que, usualmente, contemplam autorizações para a execução provisória do projeto de lei orçamentária dentro dos limites fixados, em geral 1/12 da dotação prevista para cada mês. Com isso, evita-se a paralisação da administração enquanto não aprovada a lei orçamentária"[iii].

CARLOS ALBERTO M R FILHO afirma que: "No âmbito da União, contudo, o legislador vem adotando, nos últimos anos, solução diversa, tendo passado a permitir que, enquanto não aprovada a LOA pelo Poder Legislativo, o Poder Executivo realize execução provisória de 1/12 avos do projeto de lei orçamentária que está em tramitação no Congresso Nacional. São os chamados “duodécimos”, que, ressalte-se, tomam por base para a realização das despesas públicas o projeto de lei que está em apreciação pelo Congresso Nacional e não a lei orçamentária do exercício financeiro recém-encerrado. Anota ainda que: “Essa autorização tem sido introduzida nas sucessivas leis de diretrizes orçamentárias da União, embora a CF não indique, como um dos conteúdos da LDO, o de autorizar a execução provisória do projeto de LOA ainda não aprovado. Na LDO referente ao exercício de 2011 (Lei n. 12.309, de 9-8-2010), por exemplo, o tema em questão é disciplinado no art. 68."[iv].

MARCUS ABRAHAM observa que: “Embora não haja qualquer previsão legal ou constitucional expressa para disciplinar esta situação, a solução para a situação de falta de lei orçamentária decorre da utilização temporária, na proporção mensal de 1/12 avos (duodécimos), da proposta de lei orçamentária ou da prorrogação da lei orçamentária do ano anterior, a partir da interpretação por analogia do art. 32 da Lei nº 4.320/1964, que trata da hipótese de não envio da lei orçamentária pelo Chefe do Executivo no prazo estipulado e que, neste caso, permite a utilização da lei orçamentária então vigente, desde que a lei de diretrizes orçamentárias assim o autorize”[v].

RÉGIS FERNANDES DE OLIVEIRA, por sua vez, defende que cabe “ao Executivo executar o orçamento na forma da proposta encaminhada”[vi].

Portanto, a doutrina especializada não admite a hipótese de paralisação dos serviços públicos por atraso na aprovação da LOA.

No caso de Campos, a LDO referente ao exercício de 2024 (Lei nº 9.347, de 09 de agosto de 2023) dispõe que: "Art. 60. Se o Projeto de Lei Orçamentária Anual não for sancionado pelo Prefeito até o dia 31 de dezembro de 2023, a programação dele constante poderá ser executada por duodécimos mensais, até sua efetiva sanção"[vii].

Como se vê, a LDO traz a solução para a inércia do legislativo em aprovar a LOA. Aliás, tal solução pode servir também para o caso de rejeição do projeto encaminhado pelo Executivo. Por isso, qualquer decisão do Judiciário que pretendesse obrigar o legislativo a votar a LOA poderia macular o princípio da separação de poderes, especialmente porque as regras regimentais em discussão são assunto interna corporis do Parlamento, conforme jurisprudência do STF[viii].

Por outro lado, votar a LOA não é garantia de aprovação pelo Parlamento. Embora seja improvável, a LOA pode ser rejeitada. Por isso, eventual ordem judicial poderia resolver a inércia do legislativo, mas não é garantia de aprovação da LOA, como muitos imaginam.

Por tudo isso, o citado art. 60 da LDO 2024 deve incidir independentemente das causas para a não sanção da LOA (ex. inércia do legislativo, rejeição do projeto, não envio do projeto pelo Executivo etc.).

O STF, em decisão monocrática proferida pelo Min. Nélson Jobim, assim resolveu caso análogo:

“...o art. 22 da lei alagoana, tal como a federal, não elenca as causas em razão das quais a lei não fora sancionada. Basta que não tenha sido sancionado o projeto. Não ter sido "sancionado o projeto" é a condição legal para a incidência das regras. Esta interpretação é plausível. (...) Há no pedido de liminar referência à conduta que deva tomar o Poder Legislativo: "... para ... deliberação" (fls. 15). Esta é a parte do pedido que deixo de acolher. O Poder Legislativo, de posse das propostas, exercerá, com independência e plenitude, na forma que entender, as suas funções constitucionais”. (AO 547 / AL – ALAGOAS, AÇÃO ORIGINÁRIA, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Julgamento: 14/05/1999).

 

Diante da norma disciplinadora presente na LDO, não se verifica um estado de “bloqueio institucional” do Legislativo contra o Executivo, a justificar a atuação do Judiciário[ix], principalmente porque a solução legislativa já foi dada através da LDO.

A LDO foi aprovada como lei ordinária, embora a Lei Orgânica exigisse lei complementar. A Constituição Federal não insere as leis orçamentárias no campo reservado às leis complementares.

Existe aqui um problema de constitucionalidade (Lei Orgânica vs Constituição Federal) ou de incompatibilidade vertical (LDO 2024 vs LOM), a ser resolvido ou com a mudança da LOM para que as leis orçamentárias possam ser aprovadas como ordinárias, ou com a reedição da LDO 2024 como lei complementar para atender a previsão da LOM.

A jurisprudência do STF é uníssona no sentido de que as matérias que reclamam lei complementar estão taxativamente previstas na Constituição Federal. Este entendimento aplica-se a todos os entes federativos, que devem seguir o modelo federal previsto na CF. Dessa forma, como a Carta Magna não exigiu lei complementar para a aprovação das leis orçamentárias, exceto das normas gerais com incidência em todo o território nacional (art. 165, § 9º), a alteração da Lei Orgânica é a solução mais correta.

No que diz respeito às entidades do terceiro setor, a falta de lei orçamentária não tem o condão de prejudicar as parcerias que pretendam firmar com a municipalidade. A exigência de dotação orçamentária e a respectiva indicação nos instrumentos que formalizam as parcerias são também exigidos nos demais contratos da Administração Pública, como se observa dos dispositivos legais abaixo.

De fato, a Lei 13.019/14, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil: “Art. 35. A celebração e a formalização do termo de colaboração e do termo de fomento dependerão da adoção das seguintes providências pela administração pública: (...) II - indicação expressa da existência de prévia dotação orçamentária para execução da parceria.

A Lei 14.133/2021, nova lei de licitações e contratos, estabelece que: “Art. 150. Nenhuma contratação será feita sem a caracterização adequada de seu objeto e sem a indicação dos créditos orçamentários para pagamento das parcelas contratuais vincendas no exercício em que for realizada a contratação, sob pena de nulidade do ato e de responsabilização de quem lhe tiver dado causa”.

Vale lembrar que a exigência de indicação de crédito orçamentário não significa a necessidade de disponibilidade imediata de caixa, conforme decidiu o STJ ao examinar caso à luz da antiga lei de licitações: “A lei 8.666/93 exige para a realização da licitação a existência de ‘previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das obrigações decorrentes de obras ou serviços a serem executadas no exercício financeiro em curso, de acordo com o respectivo cronograma’, ou seja, a lei não exige a disponibilidade financeira (fato da administração ter o recurso disponível ou liberado), mas, tão somente, que haja previsão destes recursos na lei orçamentária.” (REsp 1141021/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/08/2012, DJe 30/08/12).

Na ausência de lei orçamentária aprovada, a doutrina, como visto, recomenda a indicação da dotação prevista no projeto em tramitação na Câmara.  

O fato de a LDO autorizar a execução do projeto de LOA por duodécimos mensais não inviabiliza a assunção de compromissos que compreendam todo o exercício financeiro. Basta ver que o Executivo faz o repasse do duodécimo do Legislativo até o dia 20 de cada mês, como manda a Constituição Federal, mas nem por isso o Legislativo fica impedido de assumir obrigações de 12 meses ou mais.

Espera-se que o impasse político seja resolvido pelos atores envolvidos, mas não deve prevalecer o discurso de paralisação das ações do Executivo. O Legislativo tem muito poder, mas a sua inércia, embora indesejável, comporta solução dentro do Direito.

 

 



[i] Curso de Direito Constitucional Positivo, 25ª ed., Malheiros, p. 744

[ii] https://www.conjur.com.br/2019-fev-19/contas-vista-congresso-nao-aprovasse-orcamento-teriamos-shutdown/

[iii] Levando o direito financeiro a sério [livro eletrônico], Blucher, 2016.

[iv] Curso de direito financeiro, Saraiva, 2012.

[v] https://blog.grupogen.com.br/juridico/postagens/artigos/shutdown-e-democracia-orcamentaria/

[vi] Curso de Direito Financeiro, 4ª ed., RT, p. 402.

[vii] https://www.campos.rj.gov.br/app/assets/diario-oficial/link/5964

[viii] Conforme remansosa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, inclusive em precedente julgado sob a Sistemática da Repercussão Geral (Tema nº 1.120), “Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis”. (RE nº 1.297.884, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe de 4/8/21)

[ix] “O Judiciário deve atuar de forma dialogada com os outros Poderes e a sociedade, de modo que são três as balizas a serem observadas para a concessão, em parte, da prestação jurisdicional postulada: (i) intervenção judicial mínima possível, a viabilizar o alcance maximizado do objetivo de superação do quadro de bloqueio institucional, omissão legislativa, ineficiência nas ações estatais e desarmonia entre os Poderes; (ii) observância dos deveres constitucionais de cada Poder; e (iii) facilitação ou promoção de tratativas e de conduta cooperativa, transparente e solidária dos Poderes Legislativo e Executivo do Estado de Minas Gerais, bem como da União, por meio do Ministério da Economia, quanto ao regime de recuperação fiscal, com o propósito de implementar todas as providências necessárias, programáticas e estruturais aptas a corrigir os desvios que afetaram a saúde das contas públicas e a promover no ente subnacional o reequilíbrio financeiro-fiscal”. (Órgão julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. NUNES MARQUES, Julgamento: 03/07/2023, Publicação: 21/08/2023)

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