quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Inconstitucionalidade dos leilões realizados pela Pátio Norte - capítulo da ação popular

Do leilão extrajudicial de veículos e sua inconstitucionalidade.

Além dos serviços de guincho e guarda de veículos, delegou-se indevidamente à Pátio Norte a realização de leilões extrajudiciais para a venda dos veículos não retirados no prazo de 90 (noventa) dias.
A hasta pública de veículos apreendidos ou removidos está prevista no art. 328 do CTB, verbis:

Art. 328. Os veículos apreendidos ou removidos a qualquer título e os animais não reclamados por seus proprietários, dentro do prazo de noventa dias, serão levados à hasta pública, deduzindo-se, do valor arrecadado, o montante da dívida relativa a multas, tributos e encargos legais, e o restante, se houver, depositado à conta do ex-proprietário, na forma da lei.”


O CONTRAN, por meio da Resolução nº 331/2009, uniformizou o procedimento para a realização desta hasta pública, dispondo que “o órgão ou entidade competente para a realização do leilão é o responsável pelo envio do veículo ao depósito, por remoção, por retenção ou por apreensão” (cf. art. 2º, p. ú.).
Além disso, dispôs a Resolução que o leilão deverá obedecer à legislação pertinente a essa modalidade de licitação.” (cf. art. 10).
Por sua vez, a Lei de Licitações assim define o leilão:

Art. 22...

§5º Leilão é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para a venda de bens móveis inservíveis para a administração ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados, ou para a alienação de bens imóveis prevista no art. 19, a quem oferecer o maior lance, igual ou superior ao valor da avaliação.”


De acordo com a Resolução n.º 331/2009 do CONTRAN, a avaliação dos veículos será feita pelo órgão ou entidade responsável pelo leilão, verbis:

Art. 7º A avaliação dos veículos será feita pelo órgão ou entidade responsável pelo leilão, que deverá:

I - identificar os veículos que se encontram em condições de segurança para
trafegar em via aberta ao público e os veículos que deverão ser leiloados como sucata;
II - estabelecer os lotes de sucata a serem leiloados;
III - proceder à avaliação de cada veículo e de cada lote de sucata,
estabelecendo o lance mínimo para arrematação de cada item;
IV – atribuir a cada veículo identificado como sucata um valor proporcional ao valor total do lote no qual esteja incluído.” 

Da redação do dispositivo acima, percebe-se que a avaliação dos veículos é ato que possui forte carga de subjetividade e expressa a supremacia estatal, jamais poderia ter sido confiado à Pátio Norte.
A despeito de ser indelegável à iniciativa privada, o leilão extrajudicial é inconstitucional por ofensa aos princípios do devido processo legal, do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa, na medida em que é o próprio credor quem realiza a excussão do bem, subtraindo o monopólio da jurisdição do Estado, quando deveria ser realizada somente perante um magistrado constitucionalmente investido na função jurisdicional, competente para o litígio e imparcial na decisão da causa.
O mesmo raciocínio que aponta a incompatibilidade dos leilões extrajudiciais de imóveis (Decreto-Lei 70 /66) com a Constituição pode ser aplicado aos leilões extrajudiciais de veículos.
Por muitos anos, o STF considerou o leilão extrajudicial de imóvel compatível com a Carta Magna, no entanto a questão voltou a ser debatida na Corte Constitucional, já contando com seis votos, sendo quatro contra e dois a favor do leilão, conforme matéria abaixo:

No dia 18/8, o pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, do STF, suspendeu o julgamento a análise sobre a compatibilidade ou não dos dispositivos legais que autorizam a execução extrajudicial de dívidas hipotecárias, dispostos no decreto-lei 70/66, com a CF/88. A questão está sendo analisada no julgamento de dois RExts (556520 e 627106), sendo que o RExt 627106 já teve repercussão geral reconhecida.
Por enquanto, há quatro votos pela incompatibilidade dos dispositivos do decreto-lei com a CF/88. Posicionam-se assim os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Ayres Britto e Marco Aurélio.
Outros dois ministros – Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski – afirmaram que não há incompatibilidade com a CF/88 nas regras que permitem a execução extrajudicial de dívidas hipotecárias. Eles inclusive lembram que o Supremo tem uma jurisprudência pacífica sobre a matéria.
O primeiro RExt é de relatoria do ministro Marco Aurélio e começou a ser julgado em maio deste ano. Ele proferiu seu voto (v. abaixo) na ocasião e, após ser seguido pelo ministro Luiz Fux, o julgamento foi adiado por um pedido de vista do ministro Dias Toffoli.
Na última quinta-feira, o ministro Marco Aurélio não chegou a votar no RExt 627106, de relatoria de Dias Toffoli. Os processos passaram a ser julgados conjuntamente porque, antes de proferir seu voto na matéria, o ministro Dias Toffoli lembrou que havia pedido vista no RExt 556520, sob relatoria do ministro Marco Aurélio.
Devido processo legal
Os quatro ministros que defendem a incompatibilidade da execução extrajudicial de dívidas hipotecárias com a CF/88 afirmam que ela ofende o devido processo legal. Nesta tarde, o primeiro a se pronunciar nesse sentido foi o ministro Luiz Fux.
Esse decreto-lei inverte completamente a lógica do acesso à justiça’, disse. ‘O devedor é submetido a atos de expropriação sem ser ouvido e se ele eventualmente quiser reclamar ele que ingressa em juízo’, emendou. Para Luiz Fux, o procedimento de expropriação de bens do devedor sem a intervenção de um magistrado afronta o princípio do devido processo legal.

A ministra Cármen Lúcia ressaltou a jurisprudência assentada sobre a matéria, mas lembrou que isso não significa que o entendimento não possa ser modificado, como ela entende que deve ocorrer. ‘A análise do que se tem no Decreto-lei 70/66 desobedece, a meu ver, os princípios básicos do devido processo legal, uma vez que o devedor se vê tolhido nos seus bens sem que haja a possibilidade imediata de acesso ao Poder Judiciário’, disse.

O ministro Ayres Britto concordou que, no caso, há desrespeito ao devido processo legal. ‘O Decreto-lei 70/66 consagra um tipo de execução privada de bens do devedor imobiliário que tem aparência de expropriação, na medida em que consagra um tipo de autotutela que não parece corresponder à teleologia da Constituição quando (esta) fala do devido processo legal’, afirmou.
Quando votou sobre a matéria, no dia 25/5 deste ano, o ministro Marco Aurélio também frisou que a Constituição determina que a perda de um bem deve respeitar o devido processo legal e, portanto, deve sempre ser analisada pelo Poder Judiciário. ‘Ninguém pode fazer justiça com as próprias mãos’.
Divergência
Primeiro a votar no dia 18/8, o ministro Dias Toffoli votou no sentido de manter a jurisprudência assentada pelo Supremo na matéria e afirmar que o decreto-lei 70/66 foi recepcionado pela Constituição.
Ele citou decisões antigas sobre o tema que ressaltam que as regras do decreto-lei não representam uma supressão do processo de execução do efetivo controle judicial, mas tão somente um deslocamento do momento em que o Poder Judiciário é chamado a intervir. No caso, o executado poderá buscar reparação judicial se entender que teve seu direito individual de propriedade lesado.
Dias Toffoli acrescentou que os demais tribunais do país passaram a adotar o mesmo entendimento do Supremo diante do firme posicionamento jurisprudencial da Corte sobre a matéria. ‘Mostra-se de rigor a reafirmação dessa pacífica jurisprudência para que se reconheça agora, com a autoridade de matéria cuja Repercussão Geral já foi reconhecida pelo plenário virtual da Corte, a recepção, pela Constituição Federal de 1988, das normas do Decreto-lei 70/66, que cuidam da execução extrajudicial’, concluiu.
O ministro Ricardo Lewandowski iniciou seu voto expressando preocupação com o volume de processos judiciais existentes no país e ressaltando o esforço do CNJ para estimular a mediação, a conciliação e a arbitragem. Ele falou ainda que o financiamento da casa popular vem crescendo e, diante disso, é preciso pensar em mecanismos ágeis para que esse mercado em expansão possa funcionar adequadamente.
Entendo que, desde o momento que o Decreto-lei 70/66 foi concebido, teve-se em mente a desburocratização do sistema de financiamento da casa própria e do imóvel para a pessoa física’, disse. Ele também frisou o fato de o Supremo ter uma jurisprudência sólida sobre a matéria tanto antes quanto depois da promulgação da CF/88.
Citando argumentos do professor Orlando Gomes, o ministro Ricardo Lewandowski lembrou ainda que o decreto-lei não impede ou proíbe o acesso à via judicial e que em qualquer fase da execução extrajudicial é possível o acesso ao Judiciário. ‘Portanto, se houver qualquer ofensa ao devido processo legal no que tange a essa execução extrajudicial, a parte que se considera prejudicada pode acorrer ao Judiciário’, afirmou”.[1]

A despeito da divergência entre os ministros, o fato é que o leilão extrajudicial de veículos não afasta o risco de que a venda se faça por preço irrisório, sem a possibilidade, diga-se de passagem, de impugnação prévia da avaliação e de outras garantias processuais, diferentemente do que ocorre no processo judicial.
Em suma, além de traduzir transferência de atos estatais indelegáveis, o leilão extrajudicial de veículos viola direitos fundamentais, notadamente os princípios do devido processo legal, do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa.


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