Do
leilão extrajudicial de veículos e sua inconstitucionalidade.
Além
dos serviços de guincho e guarda de veículos, delegou-se indevidamente à Pátio
Norte a realização de leilões extrajudiciais para a venda dos veículos não
retirados no prazo de 90 (noventa) dias.
A
hasta pública de veículos apreendidos ou removidos está prevista no art. 328 do
CTB, verbis:
“Art. 328. Os veículos
apreendidos ou removidos a qualquer título e os animais não reclamados
por seus proprietários, dentro do prazo
de noventa dias, serão levados à hasta
pública, deduzindo-se, do valor arrecadado, o montante da dívida
relativa a multas, tributos e encargos legais, e o restante, se houver,
depositado à conta do ex-proprietário, na forma da lei.”
O
CONTRAN, por meio da Resolução nº 331/2009, uniformizou o procedimento para a
realização desta hasta pública, dispondo que “o órgão ou entidade competente para a
realização do leilão é o responsável pelo envio do veículo ao depósito, por
remoção, por retenção ou por apreensão” (cf. art. 2º, p. ú.).
Além
disso, dispôs a Resolução que o leilão deverá obedecer à legislação pertinente
a essa modalidade de licitação.”
(cf. art. 10).
Por
sua vez, a Lei de Licitações assim define o leilão:
“Art. 22...
§5º Leilão é a modalidade de licitação entre
quaisquer interessados para a venda de bens móveis inservíveis para a
administração ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados, ou para a
alienação de bens imóveis prevista no art. 19, a quem oferecer o maior lance,
igual ou superior ao valor da avaliação.”
De
acordo com a Resolução n.º 331/2009 do CONTRAN, a avaliação dos veículos será
feita pelo órgão ou entidade responsável pelo leilão, verbis:
“Art. 7º A avaliação dos veículos será feita pelo órgão ou
entidade responsável pelo leilão, que deverá:
I - identificar os veículos que
se encontram em condições de segurança para
trafegar em via aberta ao
público e os veículos que deverão ser leiloados como sucata;
II - estabelecer os lotes de sucata a serem
leiloados;
III - proceder à avaliação de cada veículo
e de cada lote de sucata,
estabelecendo o lance mínimo para
arrematação de cada item;
IV – atribuir a cada veículo
identificado como sucata um valor proporcional ao valor total do lote no qual
esteja incluído.”
Da
redação do dispositivo acima, percebe-se que a avaliação dos veículos é ato que
possui forte carga de subjetividade e expressa a supremacia estatal, jamais
poderia ter sido confiado à Pátio Norte.
A
despeito de ser indelegável à iniciativa privada, o leilão extrajudicial é
inconstitucional por ofensa aos princípios do devido processo legal, do juiz
natural, do contraditório e da ampla defesa, na medida em que é o próprio
credor quem realiza a excussão do bem, subtraindo o monopólio da jurisdição do
Estado, quando deveria ser realizada somente perante um magistrado
constitucionalmente investido na função jurisdicional, competente para o
litígio e imparcial na decisão da causa.
O
mesmo raciocínio que aponta a incompatibilidade dos leilões extrajudiciais de
imóveis (Decreto-Lei 70 /66) com a Constituição pode ser aplicado aos leilões
extrajudiciais de veículos.
Por
muitos anos, o STF considerou o leilão extrajudicial de imóvel compatível com a
Carta Magna, no entanto a questão voltou a ser debatida na Corte
Constitucional, já contando com seis votos, sendo quatro contra e dois a favor
do leilão, conforme matéria abaixo:
“No dia 18/8, o pedido de vista do ministro
Gilmar Mendes, do STF, suspendeu o julgamento a análise sobre a compatibilidade
ou não dos dispositivos legais que autorizam a execução extrajudicial de
dívidas hipotecárias, dispostos no decreto-lei 70/66, com a CF/88. A questão está sendo analisada no
julgamento de dois RExts (556520 e 627106), sendo que o RExt 627106 já teve repercussão
geral reconhecida.
Por
enquanto, há quatro votos pela incompatibilidade dos dispositivos do
decreto-lei com a CF/88. Posicionam-se assim os ministros Luiz Fux, Cármen
Lúcia Antunes Rocha, Ayres Britto e Marco Aurélio.
Outros
dois ministros – Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski – afirmaram que não há
incompatibilidade com a CF/88 nas regras que permitem a execução extrajudicial
de dívidas hipotecárias. Eles inclusive lembram que o Supremo tem uma
jurisprudência pacífica sobre a matéria.
O
primeiro RExt é de relatoria do ministro Marco Aurélio e começou a ser julgado
em maio deste ano. Ele proferiu seu voto (v.
abaixo) na
ocasião e, após ser seguido pelo ministro Luiz Fux, o julgamento foi adiado por
um pedido de vista do ministro Dias Toffoli.
Na última
quinta-feira, o ministro Marco Aurélio não chegou a votar no RExt 627106, de
relatoria de Dias Toffoli. Os processos passaram a ser julgados conjuntamente
porque, antes de proferir seu voto na matéria, o ministro Dias Toffoli lembrou
que havia pedido vista no RExt 556520, sob relatoria do ministro Marco Aurélio.
Devido
processo legal
Os
quatro ministros que defendem a incompatibilidade da execução extrajudicial de
dívidas hipotecárias com a CF/88 afirmam que ela ofende o devido processo
legal. Nesta tarde, o primeiro a se pronunciar nesse sentido foi o ministro
Luiz Fux.
‘Esse decreto-lei inverte
completamente a lógica do acesso à justiça’, disse. ‘O
devedor é submetido a atos de expropriação sem ser ouvido e se ele
eventualmente quiser reclamar ele que ingressa em juízo’, emendou.
Para Luiz Fux, o procedimento de expropriação de bens do devedor sem a
intervenção de um magistrado afronta o princípio do devido processo legal.
A
ministra Cármen Lúcia ressaltou a jurisprudência assentada sobre a matéria, mas
lembrou que isso não significa que o entendimento não possa ser modificado,
como ela entende que deve ocorrer. ‘A análise do que se tem no Decreto-lei
70/66 desobedece, a meu ver, os princípios básicos do devido processo legal,
uma vez que o devedor se vê tolhido nos seus bens sem que haja a possibilidade
imediata de acesso ao Poder Judiciário’, disse.
O
ministro Ayres Britto concordou que, no caso, há desrespeito ao devido processo
legal. ‘O
Decreto-lei 70/66 consagra um tipo de execução privada de bens do devedor
imobiliário que tem aparência de expropriação, na medida em que consagra um
tipo de autotutela que não parece corresponder à teleologia da Constituição
quando (esta) fala do devido processo legal’, afirmou.
Quando
votou sobre a matéria, no dia 25/5 deste ano, o ministro Marco Aurélio também
frisou que a Constituição determina que a perda de um bem deve respeitar o
devido processo legal e, portanto, deve sempre ser analisada pelo Poder
Judiciário. ‘Ninguém pode fazer justiça com as próprias mãos’.
Divergência
Primeiro
a votar no dia 18/8, o ministro Dias Toffoli votou no sentido de manter a
jurisprudência assentada pelo Supremo na matéria e afirmar que o decreto-lei
70/66 foi recepcionado pela Constituição.
Ele
citou decisões antigas sobre o tema que ressaltam que as regras do decreto-lei
não representam uma supressão do processo de execução do efetivo controle
judicial, mas tão somente um deslocamento do momento em que o Poder Judiciário
é chamado a intervir. No caso, o executado poderá buscar reparação judicial se
entender que teve seu direito individual de propriedade lesado.
Dias
Toffoli acrescentou que os demais tribunais do país passaram a adotar o mesmo
entendimento do Supremo diante do firme posicionamento jurisprudencial da Corte
sobre a matéria. ‘Mostra-se de rigor a reafirmação dessa pacífica jurisprudência
para que se reconheça agora, com a autoridade de matéria cuja Repercussão Geral
já foi reconhecida pelo plenário virtual da Corte, a recepção, pela
Constituição Federal de 1988, das normas do Decreto-lei 70/66, que cuidam da
execução extrajudicial’, concluiu.
O
ministro Ricardo Lewandowski iniciou seu voto expressando preocupação com o
volume de processos judiciais existentes no país e ressaltando o esforço do CNJ
para estimular a mediação, a conciliação e a arbitragem. Ele falou ainda que o
financiamento da casa popular vem crescendo e, diante disso, é preciso pensar
em mecanismos ágeis para que esse mercado em expansão possa funcionar
adequadamente.
‘Entendo que, desde o momento que o Decreto-lei
70/66 foi concebido, teve-se em mente a desburocratização do sistema de
financiamento da casa própria e do imóvel para a pessoa física’, disse.
Ele também frisou o fato de o Supremo ter uma jurisprudência sólida sobre a
matéria tanto antes quanto depois da promulgação da CF/88.
Citando
argumentos do professor Orlando Gomes, o ministro Ricardo Lewandowski lembrou
ainda que o decreto-lei não impede ou proíbe o acesso à via judicial e que em
qualquer fase da execução extrajudicial é possível o acesso ao Judiciário.
‘Portanto, se houver qualquer ofensa ao devido processo legal no que tange a
essa execução extrajudicial, a parte que se considera prejudicada pode acorrer
ao Judiciário’, afirmou”.[1]
A
despeito da divergência entre os ministros, o fato é que o leilão extrajudicial
de veículos não afasta o risco de que a venda se faça por preço irrisório, sem
a possibilidade, diga-se de passagem, de impugnação prévia da avaliação e de
outras garantias processuais, diferentemente do que ocorre no processo judicial.
Em
suma, além de traduzir transferência de atos estatais indelegáveis, o leilão
extrajudicial de veículos viola direitos fundamentais, notadamente os
princípios do devido processo legal, do juiz natural, do contraditório e da
ampla defesa.
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