1.
1. Impasse na votação.
Há
algumas semanas estamos assistindo a um impasse entre Executivo e Legislativo
na tramitação do projeto de lei orçamentária anual do nosso município para o
exercício de 2024.
De
um lado, o Prefeito alega que a LOA precisa ser aprovada para que possa executar as
despesas públicas e, assim, evitar a paralisação dos serviços, ressaltando que
sem a LOA não é possível firmar parcerias com as entidades do Terceiro Setor,
que dependem da transferência de recursos financeiros pelo município para que
possam realizar ações e serviços em prol de crianças e adolescentes.
Do
outro lado, o Presidente da Câmara de Vereadores afirma que o projeto de LOA
encaminhado pelo Executivo contém muitas falhas que precisam ser corrigidas
antes da deliberação da Casa Legislativa.
O
impasse, conforme vem noticiando a imprensa, levou o Ministério Público a
instaurar inquérito civil e a buscar uma acordo entre os órgãos envolvidos para
a solução do conflito. Além disso, vereadores da situação impetraram mandado de
segurança para obrigar o Presidente da Câmara a colocar em votação o projeto da
LOA, alegando o descumprimento de regras e prazos regimentais.
2.
2. Qual é a solução jurídica para
o caso?
Nenhuma
despesa pode ser realizada sem prévia autorização legislativa (princípio da
legalidade orçamentária).
De
acordo com JOSÉ AFONSO DA SILVA, “o princípio da legalidade em matéria
orçamentária tem o mesmo fundamento do princípio da legalidade geral, segundo o
qual a Administração se subordina aos ditames da lei”[i].
A
Constituição estabelece que são de iniciativa do Presidente da República e, por
simetria, do Governador e do Prefeito, a iniciativa das leis orçamentárias (lei
do plano plurianual - PPA, lei de diretrizes orçamentárias - LDO e lei
orçamentária anual - LOA).
O
projeto da LOA deve ser encaminhado até 4 meses antes (31 de agosto) do encerramento
do exercício financeiro. Os gastos autorizados na lei orçamentária anual devem
estar de acordo com a LDO que, por sua vez, deve estar de acordo com o Plano Plurianual.
E
o que acontece se, a despeito do envio da proposta orçamentária anual pelo
Chefe do Executivo, o Legislativo permanecer inerte? Teríamos uma espécie de
shutdown, isto é, a paralisação dos serviços públicos por falta de lei
orçamentária anual? Há alguma particularidade em relação às entidades do
terceiro setor que atendem grupos vulneráveis e dependem de transferências de
recursos do orçamento municipal?
Desde
logo, cabe ressaltar que o atraso na aprovação da LOA não é algo inédito no
país, sendo muitas vezes um sinal de desarmonia entre os Poderes. A propósito, registra
FERNANDO FACURY SCAFF que o “atraso na aprovação dos projetos de lei orçamentária é
rotina no Brasil. O que deveria ocorrer antes do encerramento do ano, para vigorar no ano seguinte, é usualmente
aprovado já com o ano em curso. A lei orçamentária que deveria reger o ano de 1992 (Lei
8.409) foi aprovada em 28 de fevereiro de 1992; a de 1993 (Lei 8.652) também foi aprovada
pelo meio do ano em curso (em 29 de abril de 1993); a de 1994 (Lei 8.933) foi um escândalo,
pois foi aprovada em 9 de novembro de 1994. Mais recentemente a lei orçamentária de 2015 (Lei 13.115) foi aprovada em 20 de abril de 2015; a
de 2016 (Lei 13.332) também teve um retardo escandaloso, tendo sido aprovada em
1º de setembro de 2016. Tais períodos coincidiram com enormes disputas
entre os Poderes Executivo e Legislativo da União, que culminaram com o impeachment de dois presidentes e o rearranjo econômico do país”[ii].
A
despeito de se tratar de um fenômeno relativamente comum no país, especialmente
no âmbito federal, não ocorreu a paralisação dos serviços em decorrência do
atraso na aprovação da LOA. Nos EUA se fala em shutdown
para se referir ao apagão financeiro pela não aprovação do orçamento no
Congresso.
No
Brasil, a doutrina rejeita a possibilidade de paralisação dos serviços públicos,
apontando diversas saídas para contornar a inércia do legislativo.
Neste
sentido, ensina JOSÉ MAURÍCIO CONTI que: "Várias são as possibilidades de resolver a
questão da falta de orçamento, que, registre-se, pode ocorrer por diversas
razões além da não aprovação tempestiva: não apresentação do projeto de lei,
rejeição do projeto de lei, veto, etc. A doutrina já se debruçou sobre o tema,
defendendo as mais diversas teses: prorrogação do orçamento vigente, aprovação
do projeto por decurso de prazo, abertura de créditos orçamentários específicos
ou a regulamentação prévia da situação pela Constituição ou pela lei. (...)
Constituição de 1988 é omissa nesse aspecto e, atualmente, a situação vem sendo
regulada, no âmbito federal, por dispositivos reiterados nas Leis de Diretrizes
Orçamentárias que, usualmente, contemplam autorizações para a execução
provisória do projeto de lei orçamentária dentro dos limites fixados, em geral
1/12 da dotação prevista para cada mês. Com isso, evita-se a paralisação da
administração enquanto não aprovada a lei orçamentária"[iii].
CARLOS
ALBERTO M R FILHO afirma que: "No âmbito da União, contudo, o
legislador vem adotando, nos últimos anos, solução diversa, tendo passado a
permitir que, enquanto não aprovada a LOA pelo Poder Legislativo, o Poder
Executivo realize execução provisória de 1/12 avos do projeto de lei
orçamentária que está em tramitação no Congresso Nacional. São os chamados
“duodécimos”, que, ressalte-se, tomam por base para a realização das despesas
públicas o projeto de lei que está em apreciação pelo Congresso Nacional e não
a lei orçamentária do exercício financeiro recém-encerrado. Anota ainda que: “Essa
autorização tem sido introduzida nas sucessivas leis de diretrizes
orçamentárias da União, embora a CF não indique, como um dos conteúdos da LDO,
o de autorizar a execução provisória do projeto de LOA ainda não aprovado. Na
LDO referente ao exercício de 2011 (Lei n. 12.309, de 9-8-2010), por exemplo, o
tema em questão é disciplinado no art. 68."[iv].
MARCUS
ABRAHAM observa que: “Embora não haja qualquer previsão legal ou
constitucional expressa para disciplinar esta situação, a solução para a
situação de falta de lei orçamentária decorre da utilização temporária, na
proporção mensal de 1/12 avos (duodécimos), da proposta de lei orçamentária ou
da prorrogação da lei orçamentária do ano anterior, a partir da interpretação
por analogia do art. 32 da Lei nº 4.320/1964, que trata da hipótese de não
envio da lei orçamentária pelo Chefe do Executivo no prazo estipulado e que,
neste caso, permite a utilização da lei orçamentária então vigente, desde que a
lei de diretrizes orçamentárias assim o autorize”[v].
RÉGIS
FERNANDES DE OLIVEIRA, por sua vez, defende que cabe “ao Executivo executar o
orçamento na forma da proposta encaminhada”[vi].
Portanto,
a doutrina especializada não admite a hipótese de paralisação dos serviços
públicos por atraso na aprovação da LOA.
No
caso de Campos, a LDO referente ao exercício de 2024 (Lei nº 9.347, de 09 de
agosto de 2023) dispõe que: "Art. 60. Se o Projeto de Lei
Orçamentária Anual não for sancionado pelo Prefeito até o dia 31 de dezembro de
2023, a programação dele constante poderá ser executada por duodécimos mensais,
até sua efetiva sanção"[vii].
Como
se vê, a LDO traz a solução para a inércia do legislativo em aprovar a LOA.
Aliás, tal solução pode servir também para o caso de rejeição do projeto
encaminhado pelo Executivo. Por isso, qualquer decisão do Judiciário que
pretendesse obrigar o legislativo a votar a LOA poderia macular o princípio da
separação de poderes, especialmente porque as regras regimentais em discussão
são assunto interna corporis do
Parlamento, conforme jurisprudência do STF[viii].
Por
outro lado, votar a LOA não é garantia de aprovação pelo Parlamento. Embora
seja improvável, a LOA pode ser rejeitada. Por isso, eventual ordem judicial
poderia resolver a inércia do legislativo, mas não é garantia de aprovação da
LOA, como muitos imaginam.
Por
tudo isso, o citado art. 60 da LDO 2024 deve incidir independentemente das causas
para a não sanção da LOA (ex. inércia do legislativo, rejeição do projeto, não
envio do projeto pelo Executivo etc.).
O
STF, em decisão monocrática proferida pelo Min. Nélson Jobim, assim resolveu
caso análogo:
“...o art. 22 da lei alagoana,
tal como a federal, não elenca as causas em razão das quais a lei não fora sancionada.
Basta que não tenha sido sancionado o projeto. Não ter sido "sancionado o
projeto" é a condição legal para a incidência das regras. Esta
interpretação é plausível. (...) Há no pedido de liminar referência à conduta
que deva tomar o Poder Legislativo: "... para ... deliberação" (fls.
15). Esta é a parte do pedido que deixo de acolher. O Poder Legislativo, de
posse das propostas, exercerá, com independência e plenitude, na forma que
entender, as suas funções constitucionais”. (AO 547 / AL – ALAGOAS, AÇÃO
ORIGINÁRIA, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Julgamento: 14/05/1999).
Diante
da norma disciplinadora presente na LDO, não se verifica um estado de “bloqueio institucional” do Legislativo
contra o Executivo, a justificar a atuação do Judiciário[ix], principalmente
porque a solução legislativa já foi dada através da LDO.
A
LDO foi aprovada como lei ordinária, embora a Lei Orgânica exigisse lei
complementar. A Constituição Federal não insere as leis orçamentárias no campo
reservado às leis complementares.
Existe aqui um problema de constitucionalidade (Lei Orgânica vs Constituição Federal) ou
de incompatibilidade vertical (LDO 2024 vs LOM), a ser resolvido ou com a
mudança da LOM para que as leis orçamentárias possam ser aprovadas como
ordinárias, ou com a reedição da LDO 2024 como lei complementar para atender a
previsão da LOM.
A
jurisprudência do STF é uníssona no sentido de que as matérias que reclamam lei
complementar estão taxativamente previstas na Constituição Federal. Este
entendimento aplica-se a todos os entes federativos, que devem seguir o modelo
federal previsto na CF. Dessa forma, como a Carta Magna não exigiu lei complementar para a aprovação
das leis orçamentárias, exceto das normas gerais com incidência em todo o território
nacional (art. 165, § 9º), a alteração da Lei Orgânica é a solução mais correta.
No
que diz respeito às entidades do terceiro setor, a falta de lei orçamentária
não tem o condão de prejudicar as parcerias que pretendam firmar com a
municipalidade. A exigência de dotação orçamentária e a respectiva indicação
nos instrumentos que formalizam as parcerias são também exigidos nos demais
contratos da Administração Pública, como se observa dos dispositivos legais
abaixo.
De
fato, a Lei 13.019/14, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a
administração pública e as organizações da sociedade civil: “Art. 35. A celebração e a formalização do
termo de colaboração e do termo de fomento dependerão da adoção das seguintes
providências pela administração pública: (...) II - indicação expressa da existência de prévia dotação orçamentária para
execução da parceria”.
A
Lei 14.133/2021, nova lei de licitações e contratos, estabelece que: “Art. 150. Nenhuma contratação será feita sem a caracterização adequada de seu
objeto e sem a indicação dos créditos
orçamentários para pagamento das parcelas contratuais vincendas no exercício em
que for realizada a contratação, sob pena de nulidade do ato e de
responsabilização de quem lhe tiver dado causa”.
Vale
lembrar que a exigência de indicação de crédito orçamentário não significa a
necessidade de disponibilidade imediata de caixa, conforme decidiu o STJ ao
examinar caso à luz da antiga lei de licitações: “A lei 8.666/93 exige para a
realização da licitação a existência de ‘previsão de recursos orçamentários que
assegurem o pagamento das obrigações decorrentes de obras ou serviços a serem
executadas no exercício financeiro em curso, de acordo com o respectivo
cronograma’, ou seja, a lei não exige a disponibilidade financeira (fato da
administração ter o recurso disponível ou liberado), mas, tão somente, que haja
previsão destes recursos na lei orçamentária.” (REsp 1141021/SP, Rel.
Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/08/2012, DJe
30/08/12).
Na
ausência de lei orçamentária aprovada, a doutrina, como visto, recomenda a
indicação da dotação prevista no projeto em tramitação na Câmara.
O
fato de a LDO autorizar a execução do projeto de LOA por duodécimos mensais não
inviabiliza a assunção de compromissos que compreendam todo o exercício
financeiro. Basta ver que o Executivo faz o repasse do duodécimo do Legislativo
até o dia 20 de cada mês, como manda a Constituição Federal, mas nem por isso o
Legislativo fica impedido de assumir obrigações de 12 meses ou mais.
Espera-se
que o impasse político seja resolvido pelos atores envolvidos, mas não deve
prevalecer o discurso de paralisação das ações do Executivo. O Legislativo tem
muito poder, mas a sua inércia, embora indesejável, comporta solução dentro do
Direito.
[i] Curso
de Direito Constitucional Positivo, 25ª ed., Malheiros, p. 744
[ii] https://www.conjur.com.br/2019-fev-19/contas-vista-congresso-nao-aprovasse-orcamento-teriamos-shutdown/
[iii] Levando
o direito financeiro a sério [livro eletrônico], Blucher, 2016.
[iv] Curso
de direito financeiro, Saraiva, 2012.
[v] https://blog.grupogen.com.br/juridico/postagens/artigos/shutdown-e-democracia-orcamentaria/
[vi] Curso
de Direito Financeiro, 4ª ed., RT, p. 402.
[vii] https://www.campos.rj.gov.br/app/assets/diario-oficial/link/5964
[viii]
Conforme remansosa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, inclusive em
precedente julgado sob a Sistemática da Repercussão Geral (Tema nº 1.120), “Em
respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da
Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas
constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder
Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do
sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas,
por se tratar de matéria interna corporis”. (RE nº 1.297.884, Rel. Min. Dias
Toffoli, Tribunal Pleno, DJe de 4/8/21)
[ix]
“O Judiciário deve atuar de forma
dialogada com os outros Poderes e a sociedade, de modo que são três as balizas
a serem observadas para a concessão, em parte, da prestação jurisdicional
postulada: (i) intervenção judicial mínima possível, a viabilizar o alcance
maximizado do objetivo de superação do quadro
de bloqueio institucional, omissão legislativa, ineficiência nas ações
estatais e desarmonia entre os Poderes; (ii) observância dos deveres
constitucionais de cada Poder; e (iii) facilitação ou promoção de tratativas e
de conduta cooperativa, transparente e solidária dos Poderes Legislativo e
Executivo do Estado de Minas Gerais, bem como da União, por meio do Ministério
da Economia, quanto ao regime de recuperação fiscal, com o propósito de
implementar todas as providências necessárias, programáticas e estruturais
aptas a corrigir os desvios que afetaram a saúde das contas públicas e a
promover no ente subnacional o reequilíbrio financeiro-fiscal”. (Órgão
julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. NUNES MARQUES, Julgamento:
03/07/2023, Publicação: 21/08/2023)